Cada 31 de outubro, em boa parte das
igrejas protestantes é comemorada a Reforma do século XVI. São elaborados
discursos elogiando a façanha dos pais reformadores; o sermão será, por
milésima vez, sobre a doutrina essencial da justificação pela fé somente, como
se ainda ficasse alguma dúvida ao respeito. Os mais inovadores farão um apelo a
uma das consignas mais desafiantes da Reforma: “a igreja reformada
sempre reformando-se”, ou com um toque de sofisticação: “Ecclesia reformata
semper reformanda”, assumindo que isto aconteceu nalgum momento, ou que
ainda pode acontecer no futuro.
A minha percepção é completamente oposta. A
igreja reformada não se reforma a si mesma, dentre outras coisas, porque não
existe tal igreja reformada, nunca existiu. Existiram muitas igrejas
reformadas, cada uma por si, com poucos desejos de aceitar a autoridade ou o
magistério alheio. Assim chegamos à posição daqueles teólogos batistas de
início do século XX que, num nominalismo exagerado, negaram a existência da
Igreja universal, defendendo que existem apenas igrejas particulares,
locais, como a de Jerusalém, Antioquia, Éfeso, Roma, Corinto..., e suas
equivalentes nos nossos dias. No lado mais extremo e sectário, temos em nossos
dias a Igreja Local, fundada por Witnnes Lee, que afirma que, segundo a
Bíblia somente há igrejas locais mencionadas pelo nome da cidade onde se
encontram, deduzindo que, somente pelo fato de autodenominar-se igreja local,
são a única igreja verdadeira de Cristo, excluindo todas as restantes.
As igrejas nascidas do movimento reformado,
principalmente nas grandes cidades do norte de Europa, se preocuparam mais em
manter a ortodoxia originaria em vez de avançar em possíveis reformas que não
foram realizadas num primeiro momento. Daí a preocupação quase obsessiva em
redigir Confissões de Fé, mediante as quais pudessem fixar e delimitar a
ortodoxia reformada. Estas são as mais importantes a nível denominacional, mas
foram elaboradas muitas outras a nível nacional ou, simplesmente, local:
Confissão de Schleitheim dos Irmãos Suíços anabaptistas, escrita em 1527.
Confissão de Augsburgo de 1530, redigida por Martinho Lutero e Filipe Melâncton.
Declaração Savoy de 1658, modificação da Confissão de Westminster para se adequar à forma de governo congregacional.
Os teólogos reformados da segunda geração,
não pensaram em nenhum momento, nem tiveram em mente dar continuidade à obra
reformada, pois já tinha sido realizada via magistério nos primeiros anos. A
obra estava completa, o cânon fechado. Era o momento de fazer exegese dos Pais
apostólicos da Reforma. É o tempo na história reformada denominado escolasticismo
protestante, justamente essa mesma forma de elaborar teologia que os
reformadores criticaram com tanta força. Richard A. Muller, um dos principais
estudiosos modernos do escolasticismo protestante, o define como “teologia
académica, identificada pela cuidadosa divisão dos temas e definição de cada
uma das partes que o compõe, e pelo interesse de oferecer respostas logicas e
metafisicas às questões suscitadas pela teologia reformada”, o que dá lugar à
“ortodoxia confessional mais estritamente definida nos seus limites
doutrinários do que a teologia dos reformadores primitivos, mas, ao mesmo
tempo, mais ampla e mais diversificada na utilização de material da tradição
cristã, particularmente do material criado pelos teólogos medievais[1]. A
reação a essa forma fria e doutrinal de entender a fé, veio por parte dos
pietistas alemães, que deram ênfase ao caráter emocional da piedade cristã, e
que em determinado momento teve influência sobre John Wesley quem deu origem ao
metodismo.
A Reforma Irreformável
De maneira que o protestantismo, pela sua
história, caráter e natureza, é essencialmente irreformável. Isto não é pelo
acaso, ou resultado de um descuido posterior. Pertence à mesma essência
da Reforma. Foi assim desde o início, não é um subproduto degenerado posterior.
O exemplo mais claro é a questão do batismo. Quando alguns dos crentes
inspirados pelos princípios reformados de voltar às origens, de fundamentar sua
fé na Escritura, e somente na Escritura, descobriram que o batismo
cristão no Novo Testamento é um batismo de crentes, isto é, de pessoas
suficientemente adultas como para compreender e aceitar a mensagem de salvação,
e se dedicaram a compartilhar esta verdade com seus correligionários encontrando-se
com uma forte oposição. O batismo de infantes era intocável, irreformável.
Negar seu fundamento bíblico-teológico e ousar praticar o batismo de adultos
tornou-se um delito de alta traição, uma heresia que resultava em pena de
morte. E como foram sentenciados a morte grande quantidade de homens, mortos
sob uma refinada crueldade. Ali está a obra “The Martyr Mirror" de
Thielman J, Van Bragh de 1660 para confirmá-lo.
Nos países reformados somente um louco
poderia levar a sério e literalmente os princípios protestantes escritos em
letras de ouro e tentar colocá-los em prática. Isto quis demostrar o escritor
Premio Nobel de Literatura Gerhart Haputmann (1862-1946), em sua novela Emanuel
Quint, O Louco em Cristo (Der Naer in Chirsto Emanuel Quint, 1910),
que começa sua obra da seguinte forma: “No amanhecer de um domingo no mês de
maio, Emanuel Quint, levantou-se do sua cama de palha no chão de uma pequena
cabana que o pai, com quase nada de direito, dizia ser sua”. Depois disto,
lavou seu rosto com as águas cristalinas da montanha e saiu para pregar o
evangelho com base na doutrina do sacerdócio universal de todos os santos. Um
trabalho louvável, mas havia um problema: não tinha permissão para pregar. Era
um laico ao qual não lhe era permitido exercer esse sagrado ministério. Mas
como Emanuel Quint era um louco por Cristo, não tomou isso em conta e
anunciou em todo lugar o reino de Deus, o que lhe trouxe perseguição e a prisão.
Estamos falando da Alemanha do século XIX. Duzentos anos depois da Reforma,
John Wesley teve receio de admitir laicos no seu ministério.
Ainda hoje, quando algum professor de
seminário, leva a sério a liberdade de cátedra, ou o chamado livre exame,
e começa a discorrer sobre a possibilidade do ministério da mulher em alguma
das velhas igrejas reformadas, pode ser, que no dia seguinte esteja no olho da
rua. É certo que, sempre haverá uma igreja reformada mais liberal que
aceite este ponto. Porque acontece que, no caso de tentar seriamente
reformar a igreja reformada, o hipotético reformista dará de cara com uma dura
rejeição. Se continuar com suas pretensões reformistas, podem acontecer apenas
duas coisas: que seja expulso, excomungado, ou que procure simpatizantes com os
quais possa começar outra igreja que esteja em conformidade com seus novos
princípios reformistas. Isto é o que nos leva a pensar que a “reforma” do
protestantismo acontece somente por divisão, quebra, rompimento com a igreja
matriz, com os traumas que isto provoca e a dispersão de meios, recursos e
talentos em um “cada um no seu quadrado” que impossibilita as ações conjuntas
que a aproximação da sociedade moderna exige.
Parece ser que não há outro caminho; pedir
uma mínima mudança nalgum ponto doutrinal, por menor que seja, ou em algum
costume herdado do passado, dá de cara com a mais ferrenha negação no nome das
intocáveis Confissões de Fé ou seculares estatutos eclesiais. Desde Grand Rapids,
Michigan, ao Chaco argentino, algumas igrejas têm discutido fortemente se o
idioma da sua terra natal, holandês, alemão, ou sueco, devem seguir sendo
usados como idiomas litúrgicos, ou se é adotado o idioma do povo onde vivem,
alguns, há mais de duzentos anos. Deve se ter em consideração que a maior parte
das igrejas reformadas foram nacionalistas: Igreja da Inglaterra, Igreja da
Irlanda, Igreja de Gales, Igreja de Escocia...
Os mais resignados, guardarão silencio
diante dos obstáculos impostos à reforma ou renovação desejada, e continuarão
mantendo a comunhão com seus velhos irmãos simplesmente pela rotina; os mais
atrevidos, começarão a juntar seguidores em volta de si, e formarão uma
comunidade separada, que com o tempo pode dar lugar a uma nova denominação, da
qual surgira ainda outra, e outras. Os precedentes de ruptura não se esquecem e
são evocados como justificativa para iniciar um novo caminho separados da
“igreja mãe” seja para pregar um “evangelho mais completo”; uma organização
eclesial mais bíblica (presbiterianos, congregacionais, batistas); ou mesmo
reivindicando um nome literalmente mais neotestamentário aplicado à igreja (Igreja
de Cristo, Discípulos de Cristo).
Reforma e Ruptura
Devo admitir que, as vezes, as denominações
se atrevem a dar passos para uma reforma dos velhos caminhos, e introduzem
mudanças, no credo ou na prática, que geralmente, não dão certo, não dá
certo em relação à unidade da igreja, sempre ameaçada pelas discórdias entre
progressistas e conservadores, que facilmente pode acabar em cisma, ruptura,
separação, o que resulta bastante prejudicial para o testemunho cristão. Prejudicial
sempre e quando consideramos a unidade da igreja como um dos
princípios mais valorados pelos apóstolos, começando por Cristo: “Que todos
sejam um” (Jo. 17.21). “Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam
divisões” (Rm. 16.17). “Que não haja entre vós divisões” (1 Co. 1.10-13). Porque
o que acontece nestes casos, com ou sem razão, é que alguns se levantarão em
defesa da “sã doutrina”, ou dos “princípios reformados”, acusando ao corpo
principal da igreja de terem deixado se levar por ideias “liberais”,
desvirtuando dessa maneira a mensagem do evangelho conforme foi transmitido
pelos Pais fundadores da Reforma.
Os textos bíblicos que exortam os fiéis a
sair da Babilônia (Ap. 18.4, cf. Is. 48.20; 52.11; Jr. 50.8; 51.16, 45; 2 Co.
6.17) se tornam em uma boa desculpa para dar início a uma nova comunidade ou
denominação. Assim surgem novas igrejas supostamente mais fiéis ao legado dos
antigos, guardiães e defensores do “bom deposito da fé” (2 Tm. 1.14). Tal é a
origem, a modo de exemplo, de igrejas como a Presbiteriana ortodoxa, ou
a Presbiteriana evangélica; a Metodista primitiva, ou a Luterana do
novo sínodo. O que acontece aqui, é que o lema da igreja reformada sempre reformando-se,
inconscientemente o mudaram por igreja reformada sempre reformada. O
verbo se torna em substantivo. Não é mais ação em prol de uma melhor
definição e prática da fé —reformar—, senão uma fixação passiva no ser
reformado. O princípio igreja reformada sempre reformando-se o que está
querendo dizer é que aqui não há outra reforma senão aquela primeira reforma.
Que o que agora deve ser feito é se manter fiel à Reforma de meio milênio atrás,
sempre idêntica a si mesma, como se nela se encontrasse todo o evangelho, puro
e imaculadamente concebido. O que Jesus tenha que dizer à igreja, ou igrejas do
século XXI, deve de passar pelo filtro da Reforma.
A Reforma se torna, então, no cânon e
magistério da fé e pratica cristã; qualquer desvio da mesma é considerado
traição, apostasia, tergiversação, pois, como certo grupo de fiéis deu como título
a um dos sermões de Spurgeon, Não há outro evangelho. São esses mesmos
os que gostam de apresentar a missão cristã em termos militares ou políticos: cruzada,
aliança.
Num caso ou no outro, naqueles que
verdadeiramente querem reformar e naqueles que querem se manter perpetuamente
na reforma já acontecida, não há verdadeira reforma, senão simplesmente divisão,
cisma, oposição, combate, confrontos. Tudo isto serve para confirmar a
irrefomabilidade do protestantismo; pelo menos a reforma mediante processos de
diálogo, respeito mútuo e desejo honesto de autoexame visando um melhor serviço
para a própria igreja e à comunidade social que deve de ser iluminada com a luz
do evangelho. A divisão conduz inevitavelmente à diminuição de recursos e
talentos que somente podem ser desenvolvidos quando se trabalha em conjunto.
Isto explica o nascimento dos denominados ministérios interdenominacionais
focados em serviços e missões que as igrejas divididas não conseguem realizar
por si mesmas.
Reforma e Deformação
O protestantismo é irreformável porque
aqueles que tentam reformar, ainda que com boas intenções e argumentos
solidamente fundados na Palavra de Deus, são irremediavelmente tildados de
liberais, quando não, hereges ou algo pior, estando condenados assim a uma
situação de receio e ostracismo eclesial. Os defensores da igreja reformada
sempre reformada consideram que qualquer reforma presente é uma deformação.
Assim é impossível avançar, entender e se aprofundar na mensagem de Cristo
desde seu contexto na situação particular que cada geração tem que viver e
afrontar.
O protestantismo continuará sendo
irreformável se acredita que com declarar o credo “a igreja reformada sempre reformando-se”
estará já no caminho correto. É mais provável que se passe um século e não se
reforme nem uma virgula nem um acento sequer da sacrossanta Confissão e Livro
de Ordem e Disciplina. Conformados cada um na sua particular maneira de
entender a fidelidade da fé. Como aquele pregador que comemorou suas bodas de
outro pregando o mesmo sermão com que iniciou sua carreira ministerial, sem
mudar nem uma virgula nem um ponto. Há quem nasça infalível e com a graça a
sabedoria infusa? Não, aqui o que se impõe, como todo chamamento à conversão
que procede de Deus, é reconhecer a falta, para assim poder aceder à emenda.
Quem não sabe que está doente, dificilmente procurará um médico.
A graça é a disposição favorável e
amorosa de Deus para com o pecador. O protestantismo não é reformável, porque
carece de graça, porque não é generoso, pelo contrário, é receoso, tem medo à
ação do Espírito. O Espírito foi substituído pela letra; a graça se perdeu
entre a doutrina. Nada menos que um milagre poderá reverter a situação, isso
pressupõe arrependimento, conversão, apertura do reino de Deus que sofre
violência, mas que é possível através dos valentes.
[1] Richard A. Muller, Post
Reformation Reformed Dogmatics: The Rise and Development of Reformed Orthodoxy,
ca. 1520 to ca. 1725, 4 vols. Baker, Grand
Rapids 2003; Willem J. van Asselt, Introduction
to Reformed Scholasticism. Reformation Heritage
Books, Grand Rapids 2011.
Publicado originalmente em: https://www.pensamientoprotestante.com/2020/10/la-irreformabilidad-del-protestantismo.html
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